Eu só quero é ser feliz,
andar tranquilamente na favela onde eu nasci,
é, e poder me orgulhar,
e ter a consciência que o pobre tem seu lugar.

[ Ouça a música ]

Car@ cursista,

Certamente você já ouviu este refrão, da música “Rap da felicidade”, sucesso na década de 1990 nas vozes dos MCs Cidinho & Doca.

Sua letra mostra a relação de um sujeito, talvez um jovem, com o lugar, o bairro, a comunidade onde vive. Inspirados nessa canção, podemos compreender que a rua e a comunidade em que habitamos, seja na área urbana ou rural, dizem muito a respeito de nossas vidas e também sobre o modo como nos relacionamos com os outros e com as coisas ao nosso redor. Longe de serem meros cenários onde as coisas acontecem, esses locais de morada e convivência condicionam e, ao mesmo tempo, são condicionados por práticas sociais, econômicas e histórico-culturais, constituindo-se, assim, em territórios que marcam e são marcados pela população que neles reside e convive.

Pensando nisso e lançando um olhar sobre a juventude, perguntamos: Você já percebeu em que territórios estão inseridos os jovens  da escola  onde trabalha? O que a noção de territórios tem a ver com as juventudes? Como pensar os vínculos entre os territórios, culturas e sociabilidades juvenis?Como as dinâmicas territoriais se relacionam com a condição juvenil de garotos e garotas pobres e negros/as que, até mesmo por sua situação de vulnerabilidade social, têm modos específicos de viver os espaços?

Como vimos acima, muitas são as perguntas sobre as relações entre territórios e culturas juvenis, não é mesmo? Neste Eixo Temático, convidamos você a refletir sobre elas a partir de uma discussão que entrelaça territórios juvenis, culturas, poder e violência. Consideramos que tais aspectos são muito importantes para ampliarmos nosso olhar sobre os jovens, sobretudo em função da nossa atuação no Plano “Juventude Viva”. No Brasil, por exemplo, os esforços de enfrentamento à violência e inclusão social de jovens - especialmente negros/as, principais vítimas de homicídio no país - têm sido realizados prioritariamente em espaços  onde  há maior situação de vulnerabilidade social. São os chamados “territórios com demandas urgentes”, localizados, principalmente, nos grandes centros urbanos. De acordo com o Mapa da Violência no Brasil (Waiselfisz, 2012), entre 2002 e 2010, houve uma queda no número absoluto de homicídios na população branca e aumento nos números de homicídios na população negra e jovem metropolitana. Tal fato realça a relevância da temática aqui abordada e justifica nossa escolha por uma abordagem focada nas juventudes urbanas.

Nas próximas páginas, buscaremos compreender algumas diferenças e desigualdades territoriais no que se referem à presença e à ausência de grupos juvenis e suas produções culturais, à visibilidade e/ou estigmas que esses sujeitos obtêm através das suas produções estéticas, entre outros aspectos. Ao longo da leitura, tente se perguntar: como trabalhar no interior da escola com as vivências trazidas pelos estudantes em seus territórios, seus conhecimentos e práticas nos processos educativos? Muitas outras perguntas surgirão ao longo do caminho. Convidamos você para refletir conosco. Seja bem vind@!

Boa leitura e bom trabalho,

Álida , Gerson e Juliana

Mesmo que você, caro/a cursista, não seja professor/a de Geografia, certamente já ouviu essa palavra em expressões como “Territórios Indígenas”, “Territórios Quilombolas”, “Território do Tráfico de Drogas”, “Território de Gangues”, “Territórios Juvenis”, Territórios de Exclusão”... Mas, afinal, o que é território?  De maneira mais ampla, a noção de território inclui a utilização que as sociedades e comunidades humanas fazem do espaço. Nas palavras de Milton Santos, um dos mais importantes intelectuais negros de nosso país:

O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da resistência, das trocas materiais e espirituais e da vida sobre as quais ele influi. Quando se fala em território, deve-se, pois, de logo, entender que está se falando em território usado, utilizado por uma dada população.

SANTOS, 2000, p. 96
Foto Milton Santos

O geógrafo baiano Milton Santos é um dos mais respeitados intelectuais brasileiros e conhecido mundialmente pela genialidade da sua obra. Trabalha com, entre outros, os conceitos de espaço e território, que nos serviram de referência neste eixo. Você pode saber mais sobre as ideias de Milton Santos e sobre o livro citado clicando em http://miltonsantos.com.br/site/

O território engloba a produção da vida humana em sentido mais amplo, envolvendo as dimensões da produção material da existência, circulação e consumo, bem como as dimensões subjetivas, simbólica, cultural, ética, moral, estética etc. Assim, o elemento fundamental na construção dos territórios são os vínculos sociais, simbólicos e rituais que os diversos grupos mantêm com seus respectivos ambientes biofísicos.

Diferentes áreas de uma cidade ou de uma zona rural podem ser apropriadas simbolicamente por diferentes grupos sociais em distintas escalas espaciais e temporais. Um grupo de hip hop, por exemplo, que elege um determinado espaço de uma cidade para se reunir periodicamente, ou um grupo de Black music, que converte uma dada rua em um espaço de dança, encontro e manifestação cultural estão transformando esses locais em espaços “territorializados”. Logo, a territorialidade” é um esforço coletivo de um certo grupo de pessoas que visa usar, controlar, ocupar uma parcela do espaço, territorializando-o, ou seja, convertendo-o em seu território. Como  esse processo ocorre nas escolas? Você já reparou como os espaços escolares são apropriados de formas diferentes durante o recreio e divididos em territórios distintos por vários grupos de estudantes com identidades em comum (skatistas, evangélicos, turma do funk, nerds, galera da zoação, entre outros)? Até a sala de aula e a sala dos professores são espaços territorializados: a ‘turma da frente’, a ‘galera do fundão’, a ‘turma da janela’, ’os efetivos’, ‘os contratados’, entre outros.

Por outro lado, muitos  desses grupos podem ser “desterritorializados”, ou seja, ter sua cultura negada, seja pela sociedade civil ou pelo Estado, através da proibição e/ou restrição de suas manifestações em determinados espaços. Tal dinâmica, física e simbólica, sempre esteve presente, em algum momento, na vida de uma parcela significativa da população brasileira, principalmente negra e pobre. Um exemplo típico é a expulsão de comunidades Quilombolas, ainda não reconhecidas, de terrenos que, muitas vezes, constituem seu território histórico, cultural e simbólico, mas que juridicamente não lhes pertence. Outro exemplo refere-se à hegemonia cultural e econômica de uma minoria abastada e branca que, historicamente, fez com que em muitas cidades brasileiras houvesse a marginalização da população negra. Boa parte de suas manifestações culturais, identitárias e religiosas como os Terreiros de Candomblé e Umbanda, a Congada, os Bailes Black, Bailes Funk, Movimento Hip Hop, entre outras, foram expulsas das áreas consideradas nobres e/ou dos centros urbanos e relegadas às periferias pobres. Em várias capitais brasileiras, esse processo se tornou muito forte especialmente na década de 1970, no auge do regime Militar. Atualmente, ainda podemos perceber  esse processo através das várias remoções e revitalizações em curso nas cidades, que, muitas vezes, empurram parte da população pobre para áreas cada vez mais distantes dos centros, ou em áreas menos valorizadas pelo capital imobiliário.

Frente a esse processo de exclusão, a população negra e marginalizada tem buscado diferentes formas de resistir e resgatar sua história e sua cultura, por meio da  “reterritorialização”. Atualmente, há diversas manifestações da cultura negra pelo Brasil, protagonizadas, em sua maioria, por jovens, moradores das periferias pobres de grandes centros urbanos, como o movimento hip hop, capoeirista, o funk, etc. Variados coletivos estão encontrando novas formas de ver, pensar, usufruir e se manifestar através da apropriação de espaços públicos urbanos, que até então, eram dominados por outros usos e significados.

Um dos exemplos de grupo cultural que representa essa força jovem é o Olodum. O grupo surgiu na cidade de Salvador (Bahia) em abril de 1979, organizado por moradores dos bairros Maciel-Pelourinho, no centro histórico, durante o período de Carnaval, como bloco carnavalesco. A partir da sua integração ao carnaval de Salvador no início dos anos 1980 e devido ao seu sucesso, o grupo ganhou muitos adeptos e passou a atuar diretamente com jovens, em sua maioria negros, moradores do Pelourinho, já que viviam em situação de risco social e sob o estigma de marginalização. O Pelourinho se tornou o território do Olodum. Atualmente, o grupo é uma organização não-governamental (ONG) considerado como de utilidade pública pelo governo do estado da Bahia e ligado ao movimento negro brasileiro, reconhecido nacional e internacionalmente. Desenvolve ações de combate à discriminação social, estimula a auto-estima e o orgulho dos afro-brasileiros, defende e luta para assegurar a igualdade dos direitos civis e humanos de pessoas marginalizadas. Além da sua atuação na música, no teatro e em cursos profissionalizantes, através da Escola Olodum, o movimento busca o desenvolvimento da cidadania e preservação da cultura negra, oferecendo um saber  afro-brasileiro e novas formas de conhecimentos para além do sistema formal de ensino.

Saiba mais:

Conheça um pouco mais da história do Olodum em: neste vídeo e no site oficial.

Como se observa em Salvador, e no Pelourinho de modo específico, os territórios e seus processos de ocupação sempre estiveram, desde sua origem, associados a relações de poder. Inicialmente, referia-se, principalmente, às relações de dominação, ou seja, às fronteiras políticas, à noção de Estado e de identidade nacional. Com o passar do tempo, as relações de apropriação e os sentimentos de pertencimento foram sendo incorporados, trazendo novas possibilidades de leitura da realidade. Por exemplo, passou-se a discutir sobre migrantes e seus direitos de usufruir de espaços a eles negados, a ocupação da cidade e o trânsito por eles, o direito de indígenas e quilombolas pela terra de seus ancestrais, e outros temas relacionados.

Nesse contexto, Haesbaert (2004) considera que os territórios podem ser nomeados como dominados ou apropriados.

 

TERRITÓRIOS DOMINADOS

são marcados pelo valor de troca, pelo consumo, pela mercadoria e pela propriedade, sendo produzidos pelo domínio político, jurídico e econômico. São territórios que tendem a identidades únicas, unifuncionais, reproduzidos pelo capitalismo hegemônico.

 

TERRITÓRIOS APROPRIADOS

são gestados pela lógica cultural e simbólica, do vivido, do subjetivo; sendo marcados pelo valor de uso. São territórios diversos, de identidades múltiplas, carregados de símbolos e da complexidade que esses-lhe proporcionam – “território simbólico” e multifuncional (cultural, histórico – ancestralidade, fins de moradia, sustento, trabalho, religioso).

Milton Santos, por sua vez, propõe a realização  da leitura dos territórios a partir de sua luminosidade e de sua opacidade.

TERRITÓRIOS LUMINOSOS

são aquelas áreas com ampla visibilidade pelo Capital e pelo poder público, para onde vão grande parte dos investimentos privados e governamentais.

TERRITÓRIOS OPACOS

são marcados pela precariedade infraestrutural e de serviços, bem como pelo baixo poder aquisitivo de sua população, sendo áreas de pouco valor econômico como os morros, margens de rios, margens de rodovias, onde normalmente se formam aglomerados urbanos.

TERRITÓRIOS ou AGLOMERADOS DE EXCLUSÃO

(Haesbaert, 2004), constituídos pelas periferias pobres, que concentra boa parte da juventude negra e mestiça de baixa renda, que se encontra mais sujeita ao descaso do poder público, possui os piores indicadores socioeconômicos e são as maiores vítimas da violação de direitos.

Esperamos que, com essa contextualização, você possa entender um pouco melhor o conceito de território e os elementos que o compõe. Seja nas favelas, nas quebradas, nos morros, nas vilas, é papel da sociedade, da escola e nosso, como educadores, compreendermos a nossa juventude, seus estilos, seus modos de ser e estar nos territórios. Para tanto, é necessário entender a especificidade socioespacial da escola onde estamos inseridos, os diferentes territórios que a circundam e os que são construídos em seu interior.

Lançada em Recife no ano de 1994, a música “A cidade”, de Chico Science e Nação Zumbi [ Ouça a música ] , já nos alertava: “A cidade não para, a cidade só cresce, o de cima sobe, o de baixo desce”. Esse refrão revela o retrato da urbanização excludente levada a cabo no Brasil, que gerou uma crescente segregação socioespacial. Tal processo se manifesta em paisagens com as quais convivemos cotidianamente. É o que mostra a fotografia da região de Paraisópolis, na cidade de São Paulo. Esta realidade se expressa no lugar onde você mora e/ou ao redor da escola em que você trabalha? Como a juventude circula por entre estes territórios? Você percebe diferenças entre jovens negros e brancos na ocupação da sua cidade? Por que estas diferenças persistem? 

Desigualdade em Paraisópolis SP

Paraisópolis, de Tuca Vieira. Disponível em: http://goo.gl/LSYl7F

Pensemos, por exemplo, nas grandes metrópoles brasileiras. Marcadas por contradições e desigualdades, elas comportam parcelas da população com condições muito distintas de vida, saúde, educação, trabalho, lazer etc. Enquanto parte de seus moradores usufruem de uma série de serviços, opções de lazer, transporte e outras facilidades, outra parte não compartilha dessas possibilidades. São os habitantes das chamadas “periferias pobres”. E o que significa viver nessas regiões? Por um lado, significa conviver com as marcas da “pobreza”, em áreas distantes (ou não) dos centros administrativos e/ou comerciais, privadas de equipamentos públicos, de lazer e saneamento. Significa compartilhar certas condições socioeconômicas e vivenciar a experiência de uma precária inclusão política e social. Significa ser estigmatizado, sentir-se excluído de certas vivências, próprias dos atuais contornos da vida urbana. Significa estar sujeito a inúmeras formas de violência, seja oriunda do mundo do tráfico, seja da polícia. Significa habitar regiões onde grande parte da população é composta por negros e pardos, conforme pesquisa do IPEA (2008): 40,1% das casas localizadas em favelas são chefiadas por homens negros, 26% por mulheres negras, 21,3% por homens branco e 11,7% por mulheres brancas.

É interessante perceber como essas desigualdades raciais e territoriais aparecem em canções de rap. O tom de reflexividade e denúncia aparecem nas produções estéticas juvenis, como podemos ver no trecho da música “Capítulo 4, Versículo 3”, dos Racionais MC’s (1997):

“60% dos jovens de periferia
sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial
a cada 4 pessoas mortas pela polícia 3 são negras
nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros
a cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
aqui quem fala é primo preto mais um sobrevivente...”

[ Ouça a música ]

Por outro lado, no entanto, viver nesses locais significa compreender que, ali, há uma grande diversidade nas condições de vida, de habitação, de diversão, de partilha. São lugares onde estão presentes e expressos vários modos de vida, estilos, culturas e formas particulares de vivenciar relações de vizinhança, amizade, alianças, tensões e conflitos. Para alguns jovens, a quebrada é seu território de moradia. Num sentido mais amplo, a quebrada não é apenas uma referência espacial, ou espaço funcional de residência ou de socialização para os jovens, mas uma categoria social e simbólica, em especial. (DAYRELL, 2005). Há uma intensa marca do território periférico de moradia nas subjetividades juvenis. A canção“Amoravila” de Douglas Din, jovem negro rapper morador de uma periferia pobre de Belo Horizonte, evidencia as relações entre produção musical e identidade territorial.

Foto Douglas Din

Amo, alvenaria, telha de zinco
Chamo de união, um quarto pra cinco (...)
Mas amo esse lugar, a rua ritmo me viu
Abraçar meu talento igual rabiola no fio.
Amor, adoro esse lugar.
Ei, ei, respeito pra chegar.
Nego, lá é uma maravilha.
Nega, maravilha ser de lá (...)
Pois com humildade se constrói... “Um bom lugar...”
O que? Esquece.
“Só quem é de lá sabe o que acontece.”

[ Ouça a música ]

Periferia, portanto, não é necessariamente um estigma. Nesse sentido, diante da complexidade de um território que pode ser marcado tanto por situações de violência física e simbólica como por práticas educativas e de solidariedade, convidamos você a indagar: quais relações os jovens moradores, com os quais você convive, estabelecem com as periferias e outros territórios onde habitam?

Você já ouviu expressões como “Vamos dar um rolê?”, “Lá no meu pedaço” ou “Essa é a minha quebrada!”? O pedaço ou as quebradas (para usar uma expressão correntemente usada pelos jovens) é uma marca constitutiva da identidade espacial e das redes de relações que se enlaçam nas áreas periféricas pobres da cidade, embora a elas não estejam restritos. Destacamos que o fato de nos atentarmos para as nomeações usadas pelos próprios sujeitos pode contribuir na compreensão das territorialidades juvenis.

Para o antropólogo brasileiro José Guilherme Magnani, o pedaço se refere a relações sociais tecidas pelos sujeitos no/com o espaço, transformando-o em um território. No pedaço, há uma espécie de identidade entre os frequentadores do local, o que constitui um ponto de referência comum. O pedaço é um espaço intermediário entre a casa e a rua, onde os colegas, os “chegados”, os “irmãos” ou “manos” se encontram, apresentando outro tipo de sociabilidade, diferente tanto das relações que organizam o plano doméstico, como daquelas presentes no âmbito público e/ou impessoal.

Estar no pedaço é estar entre os iguais; é permanecer entre velhos conhecidos – amigos de infância e/ou adolescência, por exemplo – ou junto com sujeitos com os quais se compartilha atributos comuns, interesses, gostos, esperanças. É estar nos entremeios de grupos, seja com irmãos consanguíneos, seja com “irmãos de alma”, exercendo a amizade, a partilha, o conflito, a negociação. Nesses locais, as redes de sociabilidade são tecidas por conversas informais e trocas cotidianas de favores, gentilezas, olhares, comentários. No pedaço, é possível conversar sobre temas diversos, ter momentos de lazer, compartilhar. Ao serem apropriados por certos grupos sociais, um bar, um salão de beleza, uma esquina, uma praça, uma feira, um campo de futebol de várzea, entre tantos outros espaços, passam a ter outros significados para esses sujeitos, que o convertem em seu território, seu pedaço. Você consegue localizar pedaços juvenis na cidade em que vive?

Em bairros localizados em periferias pobres, em cidades grandes ou pequenas, as esquinas podem ser entendidas como exemplos de espaços propícios à formação de pedaços juvenis. Nas letras das músicas “Parado na esquina”, do MC Roba Cena, “Crime vai e vem”, dos Racionais MC’s e “Diário do tráfico”, da Banda Lordão, as esquinas são apontadas, por um lado, como locais que podem servir para combinar algumas “tretas”, beber e/ou fumar (drogas lícitas ou ilícitas), e, por vezes, para realizar atividades relacionadas ao tráfico de drogas. No entanto, por outro lado, também são consideradas pontos de encontro do “bonde”, dos chegados, geralmente rapazes, seja para bater um papo, fazer um som, “zoar as minas” que por ali passam, esperar outros companheiros antes do baile etc. Embora sejam locais de múltiplas significações, muitas vezes as esquinas, juntamente com becos e locais escuros, são considerados de modo genérico, especialmente por policiais militares, como “territórios suspeitos”. Considerando que, no imaginário social, suspeição e marginalidade parecem estar intimamente associadas às classes urbanas pobres e negras e a certos territórios por elas ocupados.  Se uma esquina estiver povoada por jovens negros, sendo que um ou mais deles estejam fumando e/ou com um dos pés encostados na parede, configura-se, pois, uma situação e um território de suspeição, conforme pesquisa realizada por Dyane Brito Reis em Salvador, Bahia (2002).  Nesses casos, abordagens ou “batidas” policiais tornam-se comuns.

Saiba mais:

Você já parou para pensar como essas situações de suspeição permanente interferem na construção das identidades juvenis negras, seja nas periferias em situação de maior vulnerabilidade social, seja em outros espaços de nossas cidades? Como essa desconfiança marca certas vivências juvenis no/com os territórios? Será que jovens brancos e negros circulam do mesmo modo pelos espaços luminosos e opacos da cidade? Que tal propor um debate com jovens a esse respeito? A seguir, sugerimos vídeos e/ou reportagens que podem fomentar o debate:

1) O projeto Microdramas, dramaturgia no break, nasceu quando o Polo de Teledramaturgia da Bahia (Pote) completava dois anos de idade. Em um seminário realizado em dezembro de 2006, foram discutidas tendências e perspectivas da produção televisiva no Brasil e, especialmente, na Bahia. Nessa ocasião, foi criado um concurso, no qual cinco roteiros foram selecionados para serem produzidos e veiculados nas emissoras TVE-Ba e TV Bahia. A direção geral é de José Américo Moreira da Silva. Assista o vídeo “Ponto de interrogação”:

2) Em reportagem intitulada “Jovens negros são humilhados em shopping e gravam tudo”, do site Pragmatismo Político, uma situação bastante polêmica é exposta, qual seja, do impedimento da circulação de jovens negros em um “templo do consumo” das grandes metrópoles brasileiras: os “Rolezinhos” no shopping. Veja a reportagem e o vídeo.

Você percebeu que boa parte dos pedaços juvenis são constituídos nas ruas? Conforme aponta José Machado Pais (2003, p.117): “(...) entre jovens das camadas médias e inferiores; a rua fornece formas simbólicas de afirmação da cultura juvenil. (...) A rua é encarada como espaço mais "livre", tanto em termos comerciais, tanto em termos de controle social”. Estudos da sociologia da juventude no Brasil mostram que a rua é espaço privilegiado de práticas, representações, símbolos e rituais juvenis. Longe dos olhares dos pais, educadores ou patrões, mas sempre  os tendo como referência, os jovens constituem culturas que lhes dão uma identidade como jovens.

As culturas juvenis se manifestam na diversidade em que essa se constitui, ganhando visibilidade através dos mais diferentes estilos, que no corpo, no visual e nos espaços expressam suas marcas distintivas. Algumas delas estão presentes nos corpos juvenis e seus adornos. Como exemplo, podemos citar as tatuagens, piercings, pulseiras, bonés, colares, roupas estilizadas, calças largas ou justas, cabelos coloridos, trançados, black power e rastafari, aos quais os jovens atribuem diversos significados. Para a juventude negra, por exemplo, o cabelo marca profundamente sua construção identitária e, consequentemente, sua relação com os espaços onde circula. Nilma Lino Gomes (2006) nos diz que, dentro do contexto de relações raciais construídas na sociedade brasileira, o cabelo do/a negro/a expressa o conflito racial vivido por negros e brancos em nosso país. Você já parou para pensar como os jovens com  que você convive lidam com essas questões, seja nos salões de beleza que frequentam, nas escolas e em outros espaços da cidade?

Saiba mais:

Conheça o coletivo “Meninas Black Power”. Com mais de 40 mil seguidores no Facebook e com um Blog no ar, o grupo propaga o orgulho de ter cabelo crespo natural, além de promover ricas discussões a respeito da mulher negra, especialmente no Brasil.

Outra marca juvenil a ser observada é a música. Você já percebeu como ela é uma importante orientadora de grupos e estilos juvenis em diversos territórios? Hip-hop, rock, samba, pagode, forró, dentre tantos outros ritmos musicais... Além da música, as danças, o grafite e os esportes são importantes mediadores da construção de vivências de jovens. São práticas que podem ser observadas em variados espaços de cada cidade.

Saiba mais:

Em Belo Horizonte, por exemplo, debaixo de um conhecido viaduto do centro da cidade, podemos alcançar um pedaço de um grupo de jovens envolvidos com a cultura hip-hop. Ali, desde 2007, nas noites de sexta-feira, acontece o "Duelo de MC’s". Muitas das apresentações realizadas – o duelo entre rappers, a dança break, os grafites - podem ser vistas no Youtube.

De maneira parecida, no vídeo abaixo vemos, em Belém do Pará, a apresentação do rapper RAPdura cantando “Norte Nordeste me veste”. As imagens do show são da festa de música negra - Black Soul Samba - que acontece toda sexta no Palafita, localizado no centro histórico da cidade.

E em sua cidade? Há algum espaço em que as expressividades juvenis são marcantes? A juventude negra de sua cidade se encontra em algum lugar?

Nesse contexto, os grupos culturais ganham relevância. A mídia geralmente identifica esses grupos como tribos. No entanto, preferimos usar o conceito de culturas juvenis, pois se referem a práticas que possibilitam a demarcação de identidades entre os jovens, diferenciando-os das crianças e dos adultos e, ainda, expressando adesão a um determinado estilo. Quando falamos em culturas juvenis, nos referimos a modos de vida específicos e práticas cotidianas dos jovens, que expressam certos significados e valores tanto no âmbito das instituições quanto no âmbito da própria vida cotidiana, constituindo novas territorialidades.

Nesse contexto, muitos rapazes e garotas constituem grupos de estilo e identidade – rappers, grafiteiros, funkeiros, pichadores, punks, sambistas, forrozeiros, entre muitos outros. Nesses grupos, partilham-se sentimentos de pertencimento e afirmação coletiva, com o entrelaçamento das dimensões afetiva, simbólica e estética, expressões que se concretizam espacialmente, constituindo diferentes territórios juvenis. A esse respeito, em pesquisa realizada por Juarez Dayrell (2005), um jovem adulto rapper negro relata: “(...) tava a fim de jogar a minha identidade no bueiro, pegar uma passagem pra qualquer lugar, só não faço isto por causa do [grupo] Raiz Negra, do teatro e da minha mãe. Eu acho que são os únicos vínculos que eu tenho aqui em Belo Horizonte. Seu eu parar agora eu morro, eu suicido.” 

Saiba mais:

Por todo Brasil, há uma variedade de grupos e coletivos juvenis negros que usam diferentes linguagens para expressar suas produções culturais e/ou reivindicar seus direitos. Conheça algumas experiências:

  • CUFA - Central Única das Favelas – Foi criada a partir da união entre jovens de várias favelas do Rio de Janeiro – principalmente negros – que buscavam espaços para expressarem suas atitudes, questionamentos ou simplesmente sua vontade de viver. cufa.org.br
  • CASA AMARELA - O coletivo Casa Amarela promove todos os sábados uma batalha de MC´s e saraus de poesia, em articulação com grupos culturais de Belo Horizonte e região metropolitana. midiataticajovem.wordpress.com/casa-amarela
  • ENEGRECER - Coletivo nacional da Juventude Negra que busca a criação de um espaço autônomo de articulação e formação política contra o capitalismo, o racismo, o patriarcado e a homofobia. Seu objetivo é organizar jovens negros e negras, buscando a efetiva cidadania da juventude negra brasileira. enegrecer.blogspot.com.br

Pesquisas indicam que a adesão a um dos mais variados estilos existentes no meio popular ganha um papel significativo na vida dos jovens. De forma diferenciada, abre a eles a possibilidade de práticas, relações e símbolos por meio dos quais criam espaços próprios, com uma ampliação dos circuitos e redes de trocas, meios privilegiados pelos quais se introduzem na esfera pública. Para muitos jovens, os grupos culturais são espaço de construção de uma autoestima e afirmação enquanto sujeitos, possibilitando-lhes identidades positivas, caso do coletivo “Meninas Black Power”, por exemplo. Ao mesmo tempo, é preciso enfatizar que as práticas culturais juvenis não são homogêneas e se orientam conforme os objetivos que as coletividades juvenis são capazes de processar, num contexto de múltiplas influências externas e interesses produzidos no interior de cada agrupamento específico.

Por exemplo, em torno do mesmo estilo cultural, podem ocorrer práticas orientadas para a fruição saudável do tempo livre (lazer e entretenimento), para a mobilização cidadã a fim de realizar ações solidárias ou ainda para a delinquência, intolerância e agressividade, entre outras. Nesse sentido, é preciso compreender que os jovens também colocam na cena pública marcas identitárias e saberes sobre a cidade que, às vezes, são considerados marginais ou ilegais, como a própria pichação. Os sujeitos (re)significam os usos dos espaços e equipamentos públicos a partir de relações de distância entre os sujeitos e destes com os espaços, gerando competições entre grupos sociais por territórios. Constituem, pois, sociabilidades outras, que podem se concretizar como territorialidades violentas.

Pesquisadores têm apontado que as relações dos sujeitos com os espaços, especialmente em sua dimensão simbólica, marcam profundamente a constituição dessas territorialidades violentas. Pesquisas realizadas com grupos de pichadores em Fortaleza e Brasília, por exemplo, mostram que a invasão do território alheio para pichar pode significar desrespeito às fronteiras pré-estabelecidas. Tal fato pode levar ao conflito entre grupos e à punição, geralmente violenta, dos “cruzetas”, ou seja, indivíduos que quebram os acordos territoriais tácitos (Pereira, 2005, p.45). Essa mesma lógica também preside muitas relações estabelecidas entre gangues, que disputam territórios em função do tráfico de drogas nas grandes cidades brasileiras. Brigas pelo controle de pontos de venda, por exemplo, causam a morte de pequenos vendedores de drogas, geralmente jovens negros moradores de periferias pobres em nosso país.

As relações de gênero também marcam as territorialidades juvenis violentas, tanto nas ruas como nos espaços domésticos. Por exemplo, o mapa da violência no Brasil de 2013 mostra que há uma forte carga doméstica no que se refere à causa de mortes de mulheres jovens. Entre jovens do sexo masculino, por sua vez, predominam agressões ocorridas no espaço público e associadas à criminalidade urbana, em especial (Waiselfisz, 2013). Nesse sentido, é preciso debater sobre as vivências juvenis de rapazes e moças nos espaços públicos e privados, problematizando as relações entre territórios, violência e questões de gênero, conforme debatido no Módulo “Juventudes, sexualidades, relações raciais e de gênero”.

Saiba mais:

A pesquisadora Wivian Weller (2005) destaca que, na produção bibliográfica atual, há uma lacuna no que diz respeito à participação feminina nas culturas juvenis. Você já parou para pensar sobre a participação de jovens-adolescentes do sexo feminino no movimento hip hop ou em outras manifestações culturais? Que tal promover um debate sobre  esse assunto? Para tanto, sugerimos os seguintes materiais:

Para finalizar nossa discussão, é curioso perceber que como, em muitos projetos desenvolvidos com crianças e jovens, há um discurso recorrente “é preciso tirar os jovens da rua” ou “a rua é perigosa”, não é mesmo? No entanto, antes de fazer tais afirmações, é preciso compreender que os territórios possuem uma dimensão socializadora para esses jovens, que se apropriam das ruas e praças para encontros, interações afetivas ou mesmo como palco para a expressão da cultura que elaboram.

De modo geral, o fato de refletirmos sobre os territórios e mapear seus limites e potencialidades pode nos auxiliar a perceber que os mesmos formam, conformam e também deformam as identidades juvenis. Diante da complexidade de um território, que pode ser constituído por práticas educativas e de solidariedade e, ao mesmo tempo, ser marcado por situações de violência física e simbólica, precisamos refletir e propor ações que incentivem e valorizem o direito da juventude à vida, à educação, aos equipamentos públicos, à cidade. Esse é o nosso convite para você, caro/a cursista!

A seguir, sugestões de ferramentas através das quais vocês podem aprofundar as questões discutidas:

Outras Cores / Explorando Materiais

- O Portal EM Diálogo tem uma comunidade denominada “A Juventude no Território”. Lá você pode acessar variados textos, vídeos e imagens que tematizam as relações dos jovens com diferentes territórios. Veja: http://www.emdialogo.uff.br/node/3524

- A revista Educação, Sociedade e Cultura traz vários artigos abordando o tema Escola e Território. Você pode ter acesso gratuito através do site http://goo.gl/X5x51W

- O livro “Jovens na metrópole: Etnografias de circuitos de lazer, encontros e sociabilidade”, organizado por Bruna Mantese de Souza e José Guilherme Cantor Magnani, discute a realidade urbana através da atuação de grupos de jovens na cidade de São Paulo. Informações sobre esse livro, clique aqui: http://goo.gl/6BAst5

- Artigos sobre “Territórios juvenis”, por Paulo Carrano: http://www.blogacesso.com.br/?p=110

- Para saber mais sobre experiências que privilegiam processos educativos no entorno da escola, conheça os projetos “Bairro-Escola” e “Cidade-Escola”. Tais propostas podem inspirar ações que valorizem e dialoguem com as vivências juvenis em territórios não escolares.

- A escola diante das culturas juvenis: reconhecer para dialogar.http://goo.gl/fa9uQc

- O rap e o funk na socialização da juventude.http://goo.gl/y9Fpbq

- Funkeiros, Timbaleiros e Pagodeiros: Notas sobre juventude e música negra na cidade de Salvador http://goo.gl/D8n2JG

Conheça os autores:

Álida Angélica Alves Leal é graduada em Geografia, doutoranda em Educação e professora na UFMG. Integra o Observatório da Juventude.

Gerson Diniz Lima é graduado e mestre em Geografia pela UFMG e integra o Observatório da Juventude.

Juliana Batista dos Reis é socióloga, doutoranda em Educação (UFMG) e integra o Observatório da Juventude.

Referências bibliográficas:

    DAYRELL, J. A música entra em cena: o funk e o hip hop na socialização da juventude. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

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