Olá cursista!

Neste módulo, trabalharemos com um tema que costuma ser fonte de grandes preocupações para as famílias, para a escola, para os equipamentos da rede que atuam junto às juventudes, enfim, para toda a sociedade: as variadas formas de relação com as drogas experimentadas pelos/as jovens.

Você já deve ter se deparado nas mídias ou em seu cotidiano com notícias como a indicada abaixo:

Aluno vendia crack e maconha para colegas na escola

Três estudantes adolescentes foram flagrados consumindo maconha na manhã de terça-feira, 18, numa escola da rede estadual de ensino em Barbacena. A polícia e os pais dos alunos foram chamados à escola e, na conversa com os três envolvidos, duas meninas e um garoto, o nome de outro estudante foi mencionado como sendo a pessoa que forneceu a droga. Conduzido à presença dos policiais e da direção da escola, o adolescente citado confirmou ter vendido uma bucha de maconha para uma das garotas, pela quantia de R$ 5,00, e ainda entregou 11 pedras de crack que estavam com ele, embaladas e prontas para consumo. O adolescente disse que venderia a droga dentro da escola e revelou que vem fazendo a distribuição de crack e maconha entre os alunos há aproximadamente um mês. Ele não revelou o nome do fornecedor, indicando apenas a rua onde obteve a droga junto a um desconhecido. Segundo ele, foram-lhe entregues cerca de 60 pedras de crack e quase todas já haviam sido vendidas.

Fonte: http://www.barbacenamais.com.br/policia/1460-trafico

Na reportagem acima, vimos a escola – frequentemente representada como um lugar seguro e protegido – tornar-se um lugar de consumo e até de tráfico de drogas. Essas situações, entretanto, não acontecem somente dentro da escola. O uso e o tráfico de drogas são encontrados em todas as esferas sociais e questões como a dependência e a violência em torno desses fenômenos tornaram-se uma preocupação cada vez mais presente nas pequenas, médias e grandes cidades brasileiras.

Atualmente, estamos vivendo um momento peculiar do debate em torno desse tema em nossa sociedade, pois a visibilidade do uso de drogas veio acompanhada da associação a uma suposta expansão do consumo de crack, fazendo com que aumentasse o preconceito em relação ao usuário de drogas. Em igual proporção, também cresceu a pressão por medidas de urgência para erradicação do uso e, consequentemente, das cenas urbanas em que vários usuários se encontram, promovendo o pânico moral e a valorização de ações como a internação compulsória e a exclusão social do usuário.

Essas questões, certamente, atingem toda a juventude e, de maneira especial, a juventude negra e de camadas populares exposta a uma série de violências e negação de direitos. Trata-se de algo que preocupa a todos. Por isso, é importante que nos dediquemos à compreensão das questões relacionadas ao uso de drogas em nossa sociedade, nos atentando para a construção de um debate lúcido sobre um tema complexo.

O debate sobre uso e tráfico de drogas nos é caro neste curso, pois o genocídio da juventude negra no Brasil, já trabalhado em outros módulos no curso, tem sido fortemente ordenado por essas práticas sociais. É no contexto do tráfico de drogas que um número considerável de jovens tem perdido suas vidas e seus projetos de futuro, o que demanda de toda a sociedade brasileira um olhar atento para a forma como essa questão se complexifica a cada dia que passa.

Nosso objetivo com esse módulo, portanto, é apresentar os principais elementos teóricos, políticos e ideológicos que circunscrevem o debate acerca do uso de drogas nas sociedades, buscando subsídios para uma intervenção crítica da comunidade escolar na abordagem desse tema, fundamentada nos princípios da redução de danos, sobre os quais trataremos mais adiante.

Um abraço e boa leitura!

Isabela Saraiva de Queiroz , André Geraldo Ribeiro Diniz e Paulo Henrique de Queiroz Nogueira

Para começarmos esta conversa, é importante esclarecer que a intenção deste módulo não é defender o uso de drogas, mas ampliar o debate, procurando desmistificar certos preconceitos e visões estereotipadas sobre o assunto. Desse modo, gostaríamos de iniciar chamando a atenção para o fato de que o uso de drogas sempre fez parte da história humana, havendo, em todas as sociedades e épocas, registro da utilização de substâncias psicoativas, de diversas formas e com as mais diferentes finalidades: por razões recreativas e lúdicas, para o uso em rituais, atos sagrados e práticas curativas.

Saiba mais:

O vídeo “Cortina de fumaça”, de Rodrigo Mac Niven, apresenta e discute o uso de drogas nas mais diversas sociedades e propõe um debate fundamentado em evidências científicas e análises políticas sobre o assunto, com a opinião especializada de estudiosos do tema em todo o mundo.

Ainda que o uso de drogas seja um fenômeno antigo, a emergência do que conhecemos como o “problema das drogas” é recente em termos históricos, sendo somente no século XX que o uso de drogas se tornou, efetivamente, uma preocupação social. Nesse sentido, foi há pouco mais de 100 anos, em 1912, que as resoluções da Primeira Conferência Internacional do Ópio, realizada na Holanda, inauguraram o paradigma orientador das concepções gerais sobre drogas vigentes até os dias atuais: o paradigma proibicionista.

Os EUA foram considerados pioneiros na universalização do paradigma proibicionista, no entanto, foram as convergências locais que marcaram a especificidade de cada região e garantiram que ele se tornasse uma realidade global. No Brasil, por exemplo, a estigmatização das drogas e particularmente da maconha seguiu o modelo racializado empregado nos EUA durante o século XIX, sendo marcada pela “repressão aos grupos marginalizados, negros e migrantes que ocuparam as encostas dos morros do Rio de Janeiro.” (Adiala, 2011, p. 25). Já em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, capital do Império, proibia a venda do “pito de pango”, denominação da maconha, pelos boticários da época. Desse modo, no Brasil, a maconha foi historicamente estigmatizada por estar diretamente associada a algumas manifestações culturais da população negra, estando a sua repressão também relacionada ao discurso médico eugenista da época e às propostas de controle racial. A criminalização da maconha acabou, assim, por justificar a repressão policial contra a população negra e a proibição da sua venda e consumo pelo governo republicano brasileiro foi oficializada em 1932, cinco anos antes do mesmo ocorrer nos EUA.

Consumo de maconha e criminalização de negros

Em 1783, Portugal criou a “Real Benfeitoria de Linho-Cânhamo”, com ordens de plantar cânhamo nas novas terras da Colônia Brasil para suprir a crescente demanda internacional pelos derivados dessa planta. A primeira fazenda foi instalada no sul da colônia, onde hoje é o estado do Rio Grande do Sul, mas também foram financiadas fazendas de cânhamo no Pará, Amazonas, Maranhão, Bahia e Rio de Janeiro, locais em que a planta se adaptou melhor. Mas a Cannabis talvez seja a única planta a ser introduzida no Brasil tanto pelos Portugueses colonizadores como pelos negros escravos. Estes, vindos de Angola, traziam sementes escondidas nas vestes ou de outras formas para consumo próprio, daí o nome “fumo de angola”.

Existem, ainda, relatos de que os escravos a plantavam escondida nos canaviais ou durante o período da entressafra da cana. Devido ao seu viés socializador, por ser usada em grupo, alguns pesquisadores acreditam que seu uso pelos negros era uma forma de resistência à “desafricanização”, ou seja, uma forma de manterem parte de sua cultura e costumes nativos ainda vivos, mesmo convivendo com o fato da escravidão. Há relatos, inclusive, de seu uso nos rituais do candomblé, o que a coloca como importante fator sócio-cultural para a comunidade negra no Brasil colônia.

O Brasil foi o primeiro país do mundo a editar uma lei contra a maconha. Em 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro penalizava o “pito de pango”, denominação da maconha, no § 7º da postura que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários:

É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em $20.000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia. (Mott in Henman e Pessoa Jr., 1986).

Esse viés racial e de controle das populações se intensifica depois da metade do século XIX, quando chega ao Brasil o discurso dos psiquiatras lombrosianos. Estes criaram a teoria do “criminoso nato”, sendo apontadas essas tendências nos negros e em toda a sua cultura e hábitos. Com a abolição da escravatura, essa teoria racista caiu como uma luva, pois, os que antes eram escravos, passaram a ser “criminosos natos”.

A teoria de Rodrigues Dória, psiquiatra brasileiro, professor de Medicina Pública de Direito da Bahia, presidente da Sociedade de Medicina Legal, ex-presidente do Estado de Sergipe, é emblemática: a partir de um discurso racista supostamente científico, ele associava o consumo da maconha, hábito característico dos chamados criminosos natos, à vingança dos negros “selvagens” contra os brancos “civilizados” que os escravizaram. Vejamos um fragmento de seu texto elitista e etnocêntrico, pretensiosamente civilizado, discriminando a cultura, a religião e o maravilhoso diálogo rimado da diversidade cultural brasileira dos negros, nativos e pobres, associando tudo, inclusive a criatividade, ao uso da maconha:

Entre nós a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos “feiticeiros”, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos “candomblés” – festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhes herdaram os costumes e a fé – é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernambuco a herva é fumada nos “atimbós” – lugares onde se fazem os feitiços, e são frequentados pelos que vão aí procurar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que “porfiam na colcheia”, o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas últimas palavras de contendor

Adaptado de: http://quilombocoletivo.wordpress.com/2011/05/05/e-racista-a-criminalizacao-da-maconha-no-brasil/ e http://culturaverde.org/antiproibicionismo/cannabis-sativa/

Saiba mais:

O vídeo abaixo é um trecho do documentário Quebrando o Tabu, produzido por Fernando Grostein Andrade, no qual são discutidos alguns aspectos apresentados acima, dentre eles, o paradigma proibicionista e a criminalização das drogas e suas consequências, desde as mais visíveis, como a violência produzida pelo tráfico de drogas, até as mais sutis, como a criminalização da população negra, jovem e de periferia.

Para você, qual é o maior tabu em torno do debate sobre drogas?

Assista o trecho do vídeo localizado entre o minuto 14:49 até 35:15m. Você vai gostar!

O conceito farmacológico de droga é bastante amplo, conforme sugere a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS): “substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas produzindo alterações em seu funcionamento.” (Brasil, 2010b). Desse modo, tecnicamente, o termo “droga” serve para designar amplamente qualquer substância que, por contraste ao “alimento”, não é assimilada imediatamente como meio de renovação e conservação pelo organismo e que desencadeia no corpo reações tanto somáticas quanto psicológicas, de intensidade variável, mesmo quando absorvidas em quantidades reduzidas. Se essas substâncias modificarem o estado de consciência, de humor ou o sentimento das pessoas, serão designadas como “psicoativas”.

As drogas psicoativas, também conhecidas como drogas psicotrópicas, agem no sistema nervoso central produzindo alterações de comportamento, humor e cognição. De acordo com sua ação no organismo do indivíduo, as drogas são classificadas pela OMS em três grandes grupos (BRASIL, 2010b):

Drogas estimulantes do sistema nervoso central

substâncias responsáveis pelo aumento da atividade cerebral, uma vez que imitam ou cooperam com os neurotransmissores estimulantes do organismo do indivíduo, como a epinefrina e dopamina. Provocam sensação de alerta, disposição e resistência. Ao fim de seus efeitos, contudo, conferem cansaço, indisposição e depressão, devido à sobrecarga a que o organismo se expôs. Algumas das drogas estimulantes são: nicotina, cafeína, anfetamina, cocaína, crack e merla.

Drogas depressoras do sistema nervoso central

substâncias que provocam uma diminuição das atividades cerebrais de seu usuário, deixando-o mais lento, desligado ou alheio e menos sensível aos estímulos externos. Com o uso, advém prejuízo nas funções psicomotoras, diminuição da atividade cerebral, comprometimentos nos processos de aprendizagem e memória. Algumas das drogas depressoras são: álcool, inalantes/solventes (cheirinho da loló, lança perfume), soníferos, ansiolíticos, antidepressivos e morfina.

Drogas perturbadoras do sistema nervoso central

substâncias que não aumentam nem diminuem a atividade cerebral, mas provocam alterações sensoriais, relacionadas à percepção do espaço, tempo, paladar, olfato, entre outras. Essas alterações também podem ocorrer sob a forma de alucinações visuais e/ou auditivas. Muitas substâncias perturbadoras do sistema nervoso central são provenientes de plantas cujos efeitos foram descobertos por povos que as utilizavam em experiências religiosas ou espirituais. Com o uso, advém alteração na relação com o tempo e o espaço, alheamento social e riscos decorrentes das distorções na percepção do ambiente. Algumas substâncias classificadas nesse grupo são: maconha, haxixe, ecstasy, cogumelo, LSD e medicamentos anticolinérgicos.

Mesmo havendo grande número e diversidade de substâncias que provocam alterações no funcionamento do sistema nervoso central, somente três conjuntos de substâncias e/ou plantas foram eleitos como alvos privilegiados do paradigma proibicionista: papoula/ópio/heroína, coca/cocaína/crack e Cannabis/maconha. Foi a esse conjunto de substâncias que o termo “droga” passou a ser aplicado, integrando a linguagem comum. Assim, substâncias psicoativas como o álcool, a cafeína e a nicotina não entraram na lista das substâncias consideradas “drogas”, permanecendo na legalidade. Desse modo, diferentes representações sobre as substâncias psicoativas e os seus usuários foram sendo construídas socialmente, fazendo com que o imaginário das pessoas a esse respeito variasse.

Outras Cores

Abaixo segue o link para o Livreto informativo sobre drogas psicotrópicas, produzido pelo CEBRID/UNIFESP (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas/Universidade Federal de São Paulo) e recomendado para jovens alunos a partir do sétimo ano do ensino fundamental. Nele podem ser encontradas informações detalhadas e confiáveis sobre as substâncias psicoativas, em uma linguagem acessível para jovens. O livreto é distribuído gratuitamente pelo CEBRID e pela Secretária Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) do Governo Federal.

Clique aqui para abrir o livreto em PDF

Charge Justiça Terapêutica

LATUFF, Carlos. Theraupetic Justice. Disponível em http://narconews.com/Issue30/article790.html

De modo geral, as opiniões sobre o uso de drogas têm se baseado em dois modelos (ACSELRAD, 2000):

  • o modelo jurídico-moral e
  • o modelo biomédico ou de doença.

O modelo jurídico-moral, expresso exemplarmente na política de controle de drogas dos Estados Unidos, compreende o uso de drogas como um crime que merece punição e parte do pressuposto de que o uso de drogas ilícitas é moralmente incorreto. Separa drogas lícitas (como o álcool e a nicotina) das ilícitas e se preocupa especialmente com o controle das últimas. O controle do uso de drogas é baseado na redução da oferta, isto é, visa à redução do suprimento de drogas que chega ao país, através da destruição de plantações ou carregamentos de drogas e do aprisionamento dos traficantes. Apesar do emprego de recursos astronômicos e da obtenção de resultados pouco expressivos, o modelo jurídico-moral encontra força nas parcelas mais conservadoras da sociedade e é frequentemente utilizado como forma de controle social.

Já o modelo biomédico, ou de doença, identifica o uso de drogas como uma doença biológica/genética que requer tratamento e reabilitação. Essa visão contribui para manter os usuários impotentes e desarticulados diante da possibilidade de prevenir ou reduzir os danos decorrentes do uso, pois eles são vistos como doentes e devem ser tutelados por serem incapazes de responsabilizar-se pelos seus atos.

Há o entendimento de que os danos e riscos a que podem estar sujeitos são engendrados apenas pela substância ingerida, sem considerar outros fatores. Aqui, a ênfase está nos programas de tratamento e de prevenção, que procuram remediar o desejo ou a demanda por drogas por parte do indivíduo. Apesar da aparente contradição entre encarar o usuário de drogas como um criminoso que merece punição ou como uma pessoa doente que necessita de tratamento, os modelos de redução da oferta e de redução da demanda concordam que o objetivo final de ambas as abordagens é reduzir e, finalmente, eliminar a prevalência do uso de drogas, concentrando-se principalmente no usuário (redução do uso). Nesse sentido, os dois modelos, apesar de suas diferentes abordagens, possuem algo em comum: ambos buscam garantir a abstinência e adequar o indivíduo ao comportamento socialmente esperado.

Outro dado relevante é que esses dois modelos também são destinados a sujeitos diferentes e em condições também bastante desiguais de acesso e caracterização do uso da droga. O primeiro modelo, jurídico-moral, atinge, com muito mais frequência, os usuários de classes mais baixas, que são taxados de marginais e desviantes por usarem drogas. Já o segundo modelo atinge mais os usuários de classes altas, vistos como usuários recreativos de drogas e que podem acessar terapias e demais tratamentos médicos, caso ocorra algum excesso.

Essa dualidade é bastante marcada pelas desigualdades que caracterizam a realidade brasileira, na qual parte da população se vê privada de seus direitos básicos. Especialmente entre os jovens de camadas populares, o uso de drogas encontra-se muitas vezes associado a condições de vulnerabilidade social, pobreza e violação de direitos, o que torna esta prática mais desagregadora do que em outros contextos. Desse modo, o uso abusivo de drogas muitas vezes se apresenta para esses jovens como a parte final de uma cadeia de outras negações cotidianas de direitos, como a falta de acesso à educação, cultura, lazer, saúde, etc. É preciso, portanto, que as abordagens aos usuários de drogas considerem sua realidade concreta, para não os vitimarmos mais uma vez.

Para compreendermos de forma mais complexa por que o uso de drogas é quase sempre visto como um problema é preciso voltar um pouco na história. Ainda no começo dos anos sessenta, o movimento de contracultura que se generalizava começou a ser visto como uma experiência perigosa, já que contestava a ordem e os valores vigentes. Naquele contexto, o uso de drogas estava presente na composição de um estilo de vida no qual se buscava o questionamento e a mudança das formas de comportamento e relação com a sociedade. Para fazer frente a esse movimento, começaram a ser desenvolvidas campanhas nas quais o medo era utilizado como estratégia fundamental de proteção individual e coletiva. Esse procedimento buscava o controle do usuário, negando sua autonomia, considerada um risco. A repetição de palavras de ordem – “Não use drogas!”, “Drogas, nem morto.”, “Drogas: tô fora!” – passou, então, a ser utilizada como estratégia de prevenção ao uso, não contribuindo para uma educação sobre drogas que efetivamente pudesse ensinar as pessoas a avaliar os riscos presentes no uso e a deliberar sobre modos de relação com essas substâncias.

Campanhas contra álcool e cigarro

Desse modo, quando o trabalho preventivo é focado na disseminação de visões alarmistas sobre as drogas, impede-se a reflexão sobre o tema pois, ao disseminar o medo, compromete-se o debate efetivo sobre as diversas dimensões envolvidas no uso abusivo de substâncias e uma avaliação realista sobre os riscos presentes, especialmente no que se refere ao uso das substâncias tornadas ilícitas.

Nessa conjuntura, como os efeitos do uso de drogas são considerados sempre trágicos, as intervenções passaram a ser diretivas, fazendo com que a vontade do sujeito, fundamental num processo de educação democrática, fosse vista como um obstáculo a ser removido. Tornaram-se raros os programas direcionados ao usuário de álcool e drogas que consideram, por exemplo, as diferentes formas de uso: experimental, ocasional, habitual, dependente – este último, sem dúvida, de manejo complexo.

Também tem sido significativa a atribuição individualizada de responsabilidades e, muito raramente, promove-se uma discussão sobre a influência do nosso modelo de sociedade no uso abusivo de drogas. Assim, as bases estruturais da sociedade, nas quais se localizam os determinantes do processo saúde-doença, também são pouco consideradas, havendo uma ênfase excessiva no esforço individual de adesão a escolhas saudáveis como o foco das ações preventivas.

A problemática das drogas se relaciona, portanto, com uma série de dilemas sociais, culturais e políticos, não sendo possível compreender o significado das drogas na sociedade brasileira se não a relacionarmos com a estrutura racial do país, com as relações de gênero, com especificidades territoriais e com outras hierarquias sociais. Algumas perguntas podem nos ajudar a pensar essas questões. Você já se perguntou:

  • Por que o tráfico de drogas exercido em vilas e favelas é mais criminalizado que os demais?
  • Por que a maioria das pessoas que morrem pelo envolvimento com o tráfico de drogas são jovens, negros, do sexo masculino?
  • Por que os usuários abusivos de crack atendidos pelo SUS são, em sua maioria, de classes populares?
  • Por que os jovens estão mais vulneráveis aos efeitos negativos do uso abusivo de drogas?
  • Por que o uso de drogas por mulheres é tão invisível em nossa sociedade?
  • Por que a maioria dos usuários que frequentam as cenas de uso público de crack, as chamadas “cracolândias” são pretos ou pardos?
Cena de uso público de crack

Cena de uso público de crack (Ricardo Moraes/Reuters)

Nesse módulo, abordaremos, especificamente, uma dessas articulações: aquela que “costura’ drogas, juventude e relações raciais. E gostaríamos de trazer esse debate novamente para o contexto do tráfico de drogas no Brasil.

O movimento negro tem denunciado em sua agenda política os efeitos do tráfico de drogas e da violência policial a ele associada no cotidiano de jovens negros moradores de vilas e favelas. Segundo o relatório produzido pela Anistia Internacional (2013), intitulado “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, a polícia executa uma pessoa a cada 16 horas no Brasil, sendo que a maioria das vítimas são jovens negros do sexo masculino. Somente em 2012, foram notificadas 600 execuções. Todas essas execuções têm caracterizado um genocídio da juventude negra no Brasil, justificado, entre outras coisas, pelo modelo de prevenção hegemônico de “guerra às drogas”, que muitas vezes autoriza as corporações policiais a agirem “conforme o necessário”, podendo para isso, inclusive, usar de força letal.

É importante, desse modo, que sejamos mais críticos em relação aos óbitos causados em atividades policiais, legitimados pelo pretexto do combate ao consumo ou tráfico de drogas. Também é necessário pensar um pouco mais em como foi sendo construída a ideia do homem negro como marginal e desviante no imaginário popular, quando o que está em questão é a segurança pública. Nesse sentido, mesmo antes do aumento exponencial do consumo e tráfico de drogas, assim como da violência urbana instalada nos centros urbanos a partir da década de 1970, a população negra, sobretudo jovem e masculina, já era alvo das ações policiais e apontada pela mídia como principal suspeita. Outra fonte importante de reflexão são os dados da pesquisa da FIOCRUZ , divulgada em 2013, sobre a estimativa populacional de uso de crack e similares e o perfil do usuário no Brasil, realizada nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal. A pesquisa revelou que temos 0,81% da população brasileira usuária de crack e similares, o que representa cerca de 370 mil usuários em todo o Brasil, índice bem inferior ao número de usuários de álcool, que gira em torno 11,7 milhões de pessoas dependentes no Brasil .

A pesquisa também indicou que 40,5% dos usuários de crack e similares encontram-se na região nordeste e não nas chamadas “cracolândias” do sudeste, conforme alardeado pela mídia. A maioria dos usuários são adultos jovens (com idade média de 30 anos de idade); 14% são menores de idade (não havendo, contudo, registro de uso entre crianças com menos de 8 anos); 78% são homens e 22% mulheres; 20% são brancos e 80% pretos e pardos; 72% cursaram até o ensino fundamental; 5% são analfabetos; e 60% dos usuários são solteiros.

Todos esses dados demonstram que o uso abusivo de crack e similares encontra-se bem demarcado, sendo mais presente numa parcela da população predominantemente parda ou preta e de baixa escolaridade, o que aponta para condições de vulnerabilidade e exclusão social.

Outro dado relevante dessa pesquisa é que 80% dos usuários realizam o consumo em espaços públicos, de interação e circulação de pessoas, o que, talvez, justifique o alarde das mídias em torno do tema. Também surpreendente foi o fato do tempo médio do uso de crack relatado pelos entrevistados ser de 8 anos, o que contraria as notícias comumente veiculadas de que o usuário de crack e similares teria sobrevida inferior a 3 anos de consumo.

Em relação ao horizonte de mudança de suas condições de vida, 79% dos entrevistados afirmaram desejar se tratar e buscam serviços associados à assistência social, como distribuição de alimento, oferta de serviço de saúde e higiene, e apoio para conseguir emprego, escola/curso e atividades de lazer.

A pesquisa realizada pela Fiocruz demonstra ainda que a ideia de uma “epidemia do crack” parece não passar de um “mito urbano”. A forte correlação entre o uso de crack e as mazelas que assolam a sociedade brasileira é o que nos chama a atenção nesse estudo. Tratar a questão do crack apenas como um problema de saúde pública ou focalizar as razões desse problema apenas nas características da substância e em seus efeitos é fechar os olhos para elementos centrais que fazem parte da emergência e da manutenção desse problema: pobreza, vulnerabilidade e segregação racial. Será mesmo que o destino do usuário de crack e outras drogas é ou deveria ser sempre a cadeia, o caixão ou a rua? É isso o que dizem por aí... Vamos analisar essas ideias com mais atenção?

Confiram os dados da pesquisa citada no infográfico abaixo:

É importante mencionar, por fim, que – apesar da observação empírica, das denúncias dos movimentos negros e dos registros jornalísticos, policiais e jurídicos revelarem que a população jovem negra de periferia é a mais afetada pelo abuso de drogas – a falta de pesquisas confiáveis e aprofundadas, com o devido recorte racial, dificulta o maior detalhamento do perfil dessa população no mercado de drogas. A esse respeito, acreditamos ser oportuno evidenciar a negligência com este recorte por parte dos registros disponíveis e a ausência de maiores investimentos pelas agências de fomento à pesquisa para um conhecimento mais qualificado dessas conexões.

A associação entre droga e violência é feita com recorrência. As mídias, as conversas cotidianas, alguns religiosos e representantes do próprio Estado reproduzem discursos que fazem uma correlação direta entre drogas e violência. Além disso, o uso e o tráfico são, recorrentemente, tratados como condições similares, intensificando ainda mais essa correlação. A despeito das condições de risco a que o uso de drogas nos expõe (assim como o uso de determinados alimentos, por exemplo), existem diversas histórias pessoais e coletivas em que o uso de drogas não apresenta nenhuma associação com violências. Um exemplo disso é o movimento hippie, que tem a maconha e o LSD como elementos de um estilo de vida comunitário, pacifista e contrário à cultura capitalista.

Conforme já dissemos anteriormente, a instauração de discursos repressivos e proibicionistas construiu uma imagem parcial da relação das pessoas com as drogas: a mídia transmite noticiários sobre as “cracolândias” como se elas fossem o único destino para o usuário de crack e cenas de uso de drogas são constantemente associadas a guetos, atos criminosos, vandalismo, temor e insegurança. Por outro lado, o uso de drogas por classes médias e altas é invisibilizado. Em decorrência disso, o sistema jurídico/prisional intensifica o controle das favelas e periferias e acaba criminalizando a juventude da periferia, sobretudo, a juventude negra.

Todas essas circunstâncias contribuem para intensificar a existência de uma suposta relação entre droga e violência. Mas será mesmo que a violência é o destino de todos os usuários de drogas?

O que parece se evidenciar nesse cenário é uma violência contextualizada e dirigida a determinadas populações, e produtora de uma série de elementos: pânico moral; repressão estatal ao mercado de drogas; genocídio da juventude negra; estigma social que recai sobre o usuário; oferta de serviços de tratamento que não consideram a autonomia como um valor; monopólio político e metodológico de instituições religiosas no tratamento da dependência; criminalização da pobreza.

Os elementos acima caracterizam, portanto, uma violência direcionada a uma determinada parcela da população usuária de drogas ilícitas. A escola, muitas vezes, contribui para o exercício dessa violência contra os jovens usuários de drogas quando colabora para a sua estigmatização ou, ainda, quando recorre apenas ao aparato policial para lidar com situações de violência que envolvem o uso de substâncias psicoativas.

Um debate importante, ainda no contexto da violência institucional, é sobre as internações compulsórias de usuários de drogas. A internação compulsória só pode ocorrer mediante autorização de um juiz, sendo uma medida de segurança usada como última opção, nos casos em que os recursos extra-hospitalares se mostraram insuficientes.
Contudo, elas vêm sendo utilizadas de forma arbitrária e violenta como política prioritária para lidar com usuários de drogas, especialmente aqueles que se encontram nas chamadas “cracolândias”.

Na grande maioria das internações compulsórias, usuários são submetidos à humilhação, à perseguição e ao recolhimento em instituições em quase tudo semelhantes a prisões, conforme relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia sobre locais de internação para usuários de drogas (BRASÍLIA, 2011). A privação da liberdade é, dessa forma, mais uma violação que se acrescenta às muitas outras violações vividas por essa população.

É importante considerarmos, por fim, como revelado na pesquisa da FIOCRUZ, que o problema da maior parte dos usuários de crack que estão nas chamadas cracolândias no Brasil não é o crack em si mesmo, mas suas precárias condições de vida, configuradas em contextos de desigualdade, pobreza e exclusão.

Na nossa realidade social, marcada por profunda desigualdade socioeconômica, é possível que todos os jovens tenham acesso igualitário a emprego, renda e reconhecimento social?

As redes de solidariedade, apoio mútuo e políticas sociais possibilitam aos jovens a inserção em espaços de trabalho, cultura, lazer, escolarização, etc. Quando essa rede falha ou exclui o jovem, outras redes são acessadas por eles para alcançarem suas necessidades básicas de sobrevivência. Muitas vezes, é no tráfico de drogas que jovens das periferias e favelas encontram essa rede de apoio, que lhes permitem acessar renda, sociabilidade, o encontro com pares, reconhecimento e prestígio social. Veremos melhor o papel das redes sociais no próximo módulo.

Desse modo, o tráfico de drogas tem sido, infelizmente, uma alternativa concreta de inserção social, mesmo sob condições precárias, de ilegalidade e de extrema violência. Esses jovens, na sua maioria, são pretos e pardos, sobrerrepresentados que são nos ambientes de recrutamento: vilas, favelas e periferias urbanas. São os que portam o estigma de eternos suspeitos aos olhos discriminatórios das agências de controle institucional, sendo repetidamente incriminados, especialmente quando, além de estarem envolvidos no tráfico, também são usuários de drogas.

O tráfico, no entanto, não é algo circunscrito apenas às comunidades e bairros populares dos grandes e médios centros urbanos. Ele se relaciona com a impossibilidade de acesso a determinadas substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, e funciona em redes bastante organizadas, com pontos de vendas capilarizados por toda a sociedade. Afinal, mesmo substâncias legalizadas, como medicamentos, anabolizantes e solventes, podem ser compradas no mercado ilegal, ainda que este comércio não seja nomeado socialmente como tráfico.

Como as bocas de fumo são controladas pelo crime organizado, estão associados a elas a venda de armas, o roubo e o furto, o sequestro e outras formas de delito. Dessa forma, as bocas de fumo representam uma presença insidiosa da contravenção por movimentarem quantidades significativas de dinheiro em comunidades de baixa renda. A concorrência entre os que negociam essas substâncias na disputa por clientes e funcionários gera confrontos acirrados por território e influência sobre os que lá moram e vivem.

Contextualizar o tráfico de drogas que acontece em periferias e favelas é importante para desmistificar a ideia de que essas práticas são desenvolvidas apenas nesses territórios. Ou vocês acham que somente pobres usam drogas ilícitas? O tráfico de drogas acontece também, cotidianamente, em universidades, boates de luxo, bairros e condomínios de classes médias e altas, instituições políticas e outras redes de relações. Contudo, pelas associações já mencionadas, o tráfico das periferias e favelas acaba se tornando mais visível aos olhos da sociedade e, consequentemente, à intervenção estatal, produzindo, muitas vezes, o que já nomeamos de criminalização da pobreza e da população negra do país.

A questão do tráfico, portanto, não diz respeito apenas à escola, não devendo ser tratada como um fenômeno a ser abordado apenas pedagogicamente. Está relacionada à dinâmica de funcionamento da cidade e à organização dos territórios. Desse modo, para enfrentarmos a questão do tráfico é necessário desenvolver ações em rede, que envolvam as políticas públicas, as famílias e todos os outros pontos da rede de instituições e serviços que compõem o território. Algumas possibilidades são apresentadas abaixo:

  • estreitar relações com as famílias e a comunidade, por um lado, abrindo a escola para a sua participação não apenas nas decisões tomadas nas assembleias e colegiados escolares, mas fazendo com que a escola se torne um lugar de encontro da comunidade, incluindo finais de semana e tempos não escolares, como férias, e mobilizando dinâmicas educativas no entorno da escola para que educar seja um ato não apenas dos professores, mas de todos;
  • estabelecer parcerias com diferentes agentes sociais e equipamentos que se comprometam a cuidar da escola e protegê-la;
  • fortalecer redes articulatórias entre as escolas e o poder público no encaminhamento de questões mais específicas que demandem ações interdisciplinares e intersetoriais para além da educação;
  • mobilizar-se pela melhoria da qualidade de vida dos bairros populares, com vistas a reduzir os efeitos da associação perversa entre criminalidade, pobreza e tráfico, em que se ressaltam as más condições de vida como facilitadoras da instalação do crime organizado nas periferias;
  • compreender que a repressão ao tráfico, quando necessária, é uma ação do Estado, que deve ser pontual e acontecer nos termos da lei, inclusive no que se refere à proteção dos direitos e garantia das liberdades individuais de todos os envolvidos.

Por fim, cabe lembrar que, apesar da íntima relação entre o uso e o tráfico, é preciso que se faça uma clara distinção entre essas duas condições, já que elas apresentam diferenças importantes no campo jurídico, nas culturas e sociabilidades juvenis e na produção de subjetividades.

No campo jurídico, a Nova Lei de Drogas, de 2006, faz uma distinção entre uso e tráfico e descriminaliza a posse de drogas para consumo pessoal, o que na prática significa que o usuário não é mais considerado aos olhos da lei como um “criminoso”.
No entanto, mesmo que a posse de drogas para uso pessoal tenha deixado de ser crime, o usuário ainda é considerado autor de ato infracional, por portar e consumir substância ilegal, o que o submete a penas alternativas: advertência, prestação de serviços à comunidade e medida de comparecimento a programa ou curso educativo, além de uma estigmatização pública.

É importante mencionar ainda que a legislação não especifica a quantidade de droga portada que caracteriza posse para consumo pessoal. Assim, como consta no artigo 28, parágrafo 2º: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.” Nesse trecho do artigo, residem os mecanismos legais de criminalização da população negra, pobre e moradora de vilas e favelas.

A partir de uma reflexão sobre os danos decorrentes do paradigma proibicionista e da “guerra às drogas”, recentemente, alguns movimentos antiproibicionistas têm ganhado força no Brasil e no mundo, fundamentando suas ações no argumento de que um sistema de regulação das substâncias, com o controle governamental substituindo o atual sistema de controle de mercado clandestino, constitui uma política pública sobre drogas menos danosa, menos custosa, mais ética e mais eficaz.

Saiba mais:

Conheça o trabalho de uma dessas instituições, a LEAP (Law Enforcement Against Prohibition), uma organização internacional criada para dar voz a policiais, juízes, promotores e demais integrantes do sistema penal (na ativa ou aposentados) que, compreendendo os danos e os sofrimentos provocados pela “guerra às drogas”, lutam pela legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas. http://www.leapbrasil.com.br/.

Saiba mais:

Veja aqui a Nova Lei de Drogas de 2006. Ela traz um importante debate que orienta as políticas públicas sobre drogas no Brasil, principalmente, ao descriminalizar o usuário e diferenciar o uso do tráfico.

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Alguns jovens apresentam um padrão de uso de drogas que traz problemas na condução da sua vida pessoal, social e profissional. Evasão escolar, perda de emprego, rupturas familiares estão entre esses problemas. Nesses casos, é necessária uma intervenção que conte com a participação efetiva de toda a comunidade: escola, família, comunidade local, serviços de saúde e assistência social, sistema jurídico e segurança pública, etc. Essa intervenção deve se fundamentar em um projeto de educação cujo objetivo seja a autonomia e o diálogo, baseado na necessária orientação, a partir de informações objetivas e isentas de apelo moral, além do acompanhamento das questões próprias à condição juvenil. É assim que temos visto emergirem as condições para o surgimento de outra concepção sobre uso de drogas, pautada pelas propostas do paradigma da redução de danos e pelos princípios da educação para a autonomia.

Esses princípios envolvem, de modo geral, tratamento igual a drogas lícitas e ilícitas, não imposição da abstinência como única meta aceitável, avaliação e consideração dos riscos reais decorrentes do uso de drogas e compreensão ampliada das vulnerabilidades individuais e coletivas. ISSO É REDUÇÃO DE DANOS NA PRÁTICA!

A redução de danos trata do manejo seguro de uma ampla gama de comportamentos de alto risco e dos danos associados a eles. Nesse sentido, o importante na redução de danos não é se determinado comportamento é bom ou ruim, certo ou errado, mas se é seguro ou inseguro.

As primeiras ações destinadas a usuários de drogas fundamentadas no paradigma da redução de danos aconteceram na década de 80, na Europa, e estavam associadas à tentativa de diminuição dos casos de contaminação pelo HIV, já que o índice de novas infecções entre usuários de drogas injetáveis, em especial de heroína, era bastante alto. Assim, usuários de drogas injetáveis que não queriam ou não conseguiam parar de usar drogas eram cadastrados no serviço de saúde e passavam a receber seringas descartáveis para uso individual em troca de seringas usadas. Esse cadastramento também oferecia ao usuário outras possibilidades, como uso regulado (com horário definido e local específico – salas de uso) e substituição de heroína por medicamento prescrito (metadona).

No Brasil, em 2003, a política do Ministério da Saúde de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e outras Drogas elegeu a redução de danos como estratégia de saúde pública, por meio da qual é incentivada a criação e sistematização de intervenções junto à população usuária que, devido ao seu contexto de vulnerabilidade, não quer ou não consegue parar com o uso da droga.

Atualmente, algumas ações concretas de redução de danos no Brasil são: redução da frequência de uso; substituição de uma substância com efeito mais devastador por uma que tenha um potencial de dependência menor, por exemplo, substituição do uso de crack pelo uso de maconha; prescrição de vitaminas do complexo B para usuários de álcool; distribuição de protetor labial e filtro para cachimbos para usuários de crack, evitando o uso das latas de alumínio, por serem muito tóxicas. Cabe mencionar que o foco dessas ações é a criação de um vínculo entre o usuário e o serviço de saúde, já que somente a partir dele é que metas mais exigentes, como a abstinência, poderão ser assumidas pelo usuário.

Na escola, cabe ao professor promover espaços de diálogo lúcido sobre o tema, com informações realistas sobre as substâncias psicoativas. Quando houver prejuízo à saúde do jovem usuário, ele pode ser encaminhando pela escola, por exemplo, ao CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e drogas), que é o dispositivo especializado da rede de serviços de saúde do SUS destinado ao atendimento e acompanhamento das pessoas que têm problemas com o uso de drogas. O CAPSad é um serviço de base territorial e comunitária, cujas ações de saúde se dão em meio aberto. Inclui serviços de permanência-dia e hospitalidade noturna, atendimento ambulatorial e conta com leitos para desintoxicação em hospitais gerais.

Adotar condutas de redução de danos pressupõe a aceitação de que as práticas de alteração de consciência pelo uso de substâncias psicoativas são intrínsecas à experimentação humana que podem, no entanto, resultar em problemas sociais e de saúde, gerando a necessidade de avaliação cuidadosa dos riscos.

Saiba mais:

Conheça mais de perto a experiência do Programa Estadual de Redução de Danos do Estado de São Paulo – Experiência de Ribeirão Preto

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Um dos mitos a ser enfrentado e que cerca a questão do uso de drogas é o de que o maior problema em relação ao uso de substâncias psicoativas entre jovens alunos são as drogas ilícitas. Ao contrário, como demonstra a tabela abaixo, não são essas as substâncias mais utilizadas por eles.

Drogas

Região

Total

N NE SE S CO
1 Álcool 58,2 66,0 68,7 67,8 65,5 65,2
2 Tabaco 26,1 23,9 25,4 27,7 22,4 24,9
3 Solventes 14,4 16,3 15,8 12,7 16,5 15,5
4 Energéticos 8,0 9,8 14,1 16,6 15,2 12,0
5 Maconha 5,7 5,1 6,6 8,5 5,0 5,9
6 Ansiolíticos 2,9 4,7 4,3 4,2 4,0 4,1
7 Anfetamínicos 3,4 3,6 3,0 4,1 4,6 3,7
8 Cocaína 2,9 1,2 2,3 1,7 2,1 2,0
9 Anticolinérgicos 0,8 1,5 1,1 0,6 1,3 1,2
10 Esteróides / Anabolizantes 1,2 1,0 0,9 0,5 1,0 1,0
11 Barbitúricos 0,6 0,7 0,8 0,8 1,0 0,8
12 Crack 0,6 0,7 0,8 1,1 0,7 0,7
13 Orexígenos 0,6 1,1 0,4 0,3 0,7 0,7
14 Alucinógenos 0,4 0,3 0,8 0,9 0,9 0,6
15 Xaropes 0,3 0,3 0,4 0,3 0,6 0,4
16 Opiáceos 0,3 0,3 0,4 0,4 0,4 0,3
- Fonte: SENAD/CEBRID/ V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras, 2004.

A tabela acima revela que, entre as dez substâncias mais usadas, a maconha e a cocaína são as únicas ilícitas. O percentual de consumo de maconha é de 5,9%, e encontra-se em quinto lugar no consumo de substâncias psicoativas, enquanto a cocaína está em oitavo lugar com 2% de usuários, sendo que o uso de ambas, apesar de expressivo, encontra-se bem abaixo do consumo de álcool, tabaco, solventes e energéticos.

As substâncias psicoativas ranqueadas nas quatro primeiras posições são todas lícitas. E, com exceção dos solventes, são de fácil acesso, de uso generalizado e aceitas socialmente. Os jovens as valorizam por servirem de estimulante, por ajudarem a superar medos e dar coragem, por facilitarem a aceitação entre seus pares ou ainda por darem ao usuário ares de maior juvenilidade ou maturidade.

Já a maconha sinaliza uma dinâmica no uso, no acesso, no valor de mercado e na circulação que a associa a um estilo de vida mais comunitário e com uma identificação grupal baseada no relaxamento e no compartilhamento de experiências; a cocaína, por sua vez, por ser um estimulante dos neurotransmissores e uma mercadoria mais cara, é associada a um estilo de vida mais agitado, à festa e à balada ou ainda à vitalidade e ao empreendedorismo.

Os dados acima indicam algumas reflexões que podem ser feitas pela comunidade escolar sobre o tema. Primeiramente, é preciso pensar que a maioria de nós – professores, pais, educadores e adultos em geral – também fazemos usos de drogas lícitas como o álcool e o tabaco e, que, portanto, a reflexão com o jovem deve considerar que não estamos tão distantes deles como pode ser pensado.

Também é necessário considerar que muitos de nós, professores, fomos criados em uma cultura do silenciamento sobre temas polêmicos como os que cercam o uso da droga, em que o medo e a desinformação impedem que tratemos o tema de forma lúcida e o usuário como um sujeito de direitos.

A discussão sobre drogas na escola deve evitar tratar o tema de forma alarmista, provocando medo, sem dialogar com os alunos e sem envolvê-los, pois isso não mobiliza as representações que os alunos possuem e não convoca à reflexão.

Do mesmo modo, é importante que evitemos falar apenas do “problema”, criando alternativas reais para os alunos se sentirem acolhidos e perceberem que os professores e a escola se interessam por eles. Um ambiente de aprendizagem participativo promove a autoestima e fortalece vínculos grupais, além de incentivar a criação de limites compartilhados.

Por fim, é importante lembrar que a maior parte dos jovens alunos usuários não desenvolve dependência dessas substâncias e que o diálogo sobre os riscos presentes no uso é a principal forma de trabalhar na perspectiva da redução de danos.

Trabalhar na perspectiva da educação para a autonomia requer a revisão de uma atuação que visa unicamente o controle dos sujeitos. Ao contrário, propõe o esclarecimento dos jovens sobre os diferentes tipos de relação com a droga: os usos abusivos são percebidos como danosos, sem dúvida, e colocam a urgência de atenção e acompanhamento psicossocial, em oposição à exclusiva medida de medicalização e/ou controle policial do problema.

A educação sobre drogas, nessa perspectiva, não tem a pretensão de impedir a própria experiência do uso, nem de estimular o seu uso, como algumas críticas dão a entender. Ela aposta na consciência crítica, na responsabilidade de cada um diante de si mesmo e do outro, como alternativa às práticas autoritárias e repressoras, rompendo com a relação de poder que pretende erradicar uma prática que tem raízes na história pessoal e social.

Trata-se de potencializar o usuário como protagonista de práticas de autocuidado e estratégias de prevenção.

Esta reflexão considera, ainda, que a sociedade brasileira vive outros problemas muito sérios – desemprego estrutural, discriminações – que precisam ser pensados se quisermos abordar a questão das drogas em nossa sociedade de uma forma aprofundada.

Informações realistas sobre o uso de substâncias psicoativas devem ser disponibilizadas, mas, mais importante que as informações sobre os produtos em si, a educação sobre drogas deve promover o debate sobre os valores sociais, políticos, sobre as relações entre os sujeitos, sobre a liberdade individual e sobre o direito a dispor de seu próprio corpo.

Enfim, o nosso ideal civilizatório de uma sociedade harmônica e livre de substâncias psicoativas não é viável por distintas razões, que vão desde o fato de que não há sociedade que não tenha feito uso dessas substâncias até o fato de que o seu uso é incentivado e presente cada vez mais em nossas sociedades industrializadas.

Assim, caro/a educador/a, mais do que proibir, impedir, negar ou fazer de conta que não acontece, é melhor admitir que as drogas já estão presentes de diferentes maneiras e com diferentes usos em nossa sociedade. E que podemos, inclusive, conviver com elas ao tornar essas práticas menos danosas aos indivíduos e ao convívio social. Tal postura não significa fazer a “apologia do uso de drogas” para os alunos, mas apenas abdicar de fazer um discurso que nos afasta deles e, portanto, se torna ineficaz. Pense nisso!

Outras Cores

 

Banco de Injustiças

Banco de Injustiças

O Banco de Injustiças é uma ferramenta cujo objetivo é promover uma discussão coerente do tema drogas a partir da perspectiva da Justiça, desmistificando a ideia equivocada de que todos os presos por tráfico de drogas hoje, no Brasil, são violentos e vinculados ao crime organizado.

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CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas

CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas

Incorporado ao Departamento de Medicina Preventiva da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), organiza pesquisas e reuniões científicas sobre o assunto drogas, publica livros e levantamentos sobre o consumo e mantém um banco de trabalhos científicos brasileiros sobre o abuso de drogas.

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OBID – Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas

OBID – Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas

Projeto desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas com o objetivo de reunir e coordenar o conhecimento disponível sobre drogas para fundamentar o desenvolvimentos de programas e intervenções.

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PROAD – Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes

PROAD – Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes

Serviço ligado ao Departamento de Psiquiatria da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) destinado a dependentes de substâncias ilíciitas e lícitas, atuando também na área de dependências comportamentais, como jogo patológico, sexo compulsivo, dependência de compras e internet, além de compulsão por esportes.

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Conheça os autores:

Isabela Saraiva de Queiroz é doutoranda em Psicologia Social pela UFMG e professora da Faculdade de Psicologia da PUC Minas.

André Geraldo Ribeiro Diniz é doutorando em Psicologia Social pela UFMG e membro do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão Conexões de Saberes da UFMG..

Paulo Henrique de Queiroz Nogueira é professor da Faculdade de Educação da UFMG e membro do Observatório da Juventude da UFMG.

Referências bibliográficas:

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